sábado, 26 de novembro de 2011

Um olhar



Eu tive uma namorada que via errado. O que ela via não era uma garça na beira do rio. O que ela via era um rio na beira de uma garça. Ela despraticava as normas. Dizia que seu avesso era mais visível do que um poste.




Com ela as coisas tinham que mudar de comportamento. Aliás, a moça me contou uma vez que tinha encontros diários com as suas contradições. Acho que essa frequência nos desencontros ajudava o seu olhar oblíquo.


Falou por acréscimo que ela não contemplava as paisagens. Que eram as paisagens que a contemplavam. Chegou de ir no oculista. Não era um defeito físico falou o diagnóstico. Induziu que poderia ser uma disfunção da alma.


Mas ela falou que a ciência não têm lógica. Porque viver não tem lógica - como diria a nossa Lispector.

Veja isto: Rimbaud botou a Beleza nos joelhos e viu que Beleza é amarga. Tem lógica? Também ela quis trocar por duas andorinhas os urubus que avoavam no Ocaso de seu avô. O Ocaso de seu avô tinha virado uma praga de urubu. Ela queria trocar porque as andorinhas eram amoráveis e os urubus eram carniceiros. Ela não tinha certeza se essa troca podia ser feita. O pai falou que verbalmente podia. Que era só despraticar as normas. Achei certo.



Memórias inventadas: as infâncias de Manoel de Barros/iluminuras de Martha Barros. - São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2008.página 103.

Manoel de Barros

2 comentários:

  1. A literatura é mesmo maravilhosa...e basta só um olhar diferente...

    Profª Elaine

    ResponderExcluir
  2. O Educar passa pela sensibilização de ideias!! Nossos professores conseguem enxergar esta realidade! Parabéns pela competência ao executar tais ações.

    Rubens Ferrer- Coordenação Ensino Médio.

    ResponderExcluir