domingo, 5 de agosto de 2012

COMIDA DE URUBUS




Os urubus já rodeavam o corpo abandonado no matagal, esperavam somente o cheiro de podre tomar conta do ar para aumentarem o apetite de tão  vistosa carne, porém o corpo moribundo ainda movia lentamente a cabeça, como se acreditasse na possibilidade de vida.
Era jovem o corpo, muitos já dariam morte cerebral, mas sua mente ainda pensava e isso lhe dava sinais de que estava vivo, pois a morte cerebral seria quando o cérebro deixa de pensar, e ele pensava!
Pensava em quantas pessoas havia conhecido que mesmo vivos já lhes eram visível a morte cerebral, pois não pensavam mais há anos, estavam atrofiados. Com a mais maravilhosa arma do ser humano emperrada: o pensar.

Por isso num certo esforço, sabendo que isso seria prova para si mesmo e para os urubus, continuava vivo. Começou a pensar sobre sua tão rápida e mesquinha vida, lembrou-se dos conselhos de sua já morta (mentalmente) mãe, que sempre lhe dizia para nunca pegar nada dos outros, somente quando lhes oferecessem, lembrou dos conselhos para  andar sempre em boa companhia, como se seus amigos fossem as piores pessoas possíveis e que Deus tudo vê e que tudo na terra era obra divina, ser pobre era uma virtude posta por Deus.
Sabia e lembrava que tinha seguido o caminho contrário, que devido as necessidades impostas pela sua vida, teve que roubar, mas sabia também que seus roubos eram para matar a fome sua e de sua prole, sempre pensava que mais ladrão que ele eram os banqueiros que se alimentavam da miséria alheia, sabia que mais ladrão que ele eram os empresários exploradores do trabalho alheio.
Tinha a certeza de que seus roubos foram sempre com o objetivo de sustentar seus filhos, mas também seus pequenos vícios, e que sempre ao final de cada assalto voltava para casa com a sensação de dever cumprido, satisfeito com seu tão odiado trabalho.
Num instante o barulho de um tiro corta o silêncio que até então imperava, e agora sim, com este último tiro - na testa talvez nem dor tenha provocado-, espalhou-se  por ali, naquele mato, as ideias e pensamentos do rapaz. Ainda se via alguns espasmos e pequenas contrações musculares, nada pensado. A mais nobre ação humana, esfriava ali aos poucos no capim: o pensar.

Sobre o seu corpo alguém debruça, mexe-lhe no bolso e retira algumas notas dobradas ao meio, entram num carro público e partem abandonando o corpo. Partiam para casa com a sensação de dever cumprido, prontos para sustentarem seus pequenos vícios e sua prole, satisfeitos com seu tão adorado trabalho.
Horas mais tarde os urubus já o rodeiam com água no bico, doidos para lhe comerem o fígado que mesmo em vida já vinha estragado devido ao forte uso de álcool, doidos para lhe comerem o pulmão, também já gasto devido ao consumo excessivo de tabaco, mas estavam mais doidos ainda para lhe comerem o cérebro, pois este sim  estava perfeito para um suculento banquete, pois seus pensamentos jamais haviam sido consumidos pelos pensamentos de sua mãe.

Francisco Beltrão