Os urubus já
rodeavam o corpo abandonado no matagal, esperavam somente o cheiro de podre
tomar conta do ar para aumentarem o apetite de tão vistosa carne, porém o corpo moribundo ainda
movia lentamente a cabeça, como se acreditasse na possibilidade de vida.
Era jovem o
corpo, muitos já dariam morte cerebral, mas sua mente ainda pensava e isso lhe
dava sinais de que estava vivo, pois a morte cerebral seria quando o
cérebro deixa de pensar, e ele pensava!
Pensava em quantas
pessoas havia conhecido que mesmo vivos já lhes eram visível a morte cerebral,
pois não pensavam mais há anos, estavam atrofiados. Com a mais maravilhosa arma
do ser humano emperrada: o pensar.
Por isso num
certo esforço, sabendo que isso seria prova para si mesmo e para os urubus, continuava vivo. Começou
a pensar sobre sua tão rápida e mesquinha vida, lembrou-se dos conselhos de sua
já morta (mentalmente) mãe, que sempre lhe dizia para nunca pegar nada dos
outros, somente quando lhes oferecessem, lembrou dos conselhos para andar sempre em boa companhia, como se seus
amigos fossem as piores pessoas possíveis e que Deus tudo vê e que tudo na
terra era obra divina, ser pobre era uma virtude posta por Deus.
Sabia e
lembrava que tinha seguido o caminho contrário, que devido as necessidades
impostas pela sua vida, teve que roubar, mas sabia também que seus roubos eram
para matar a fome sua e de sua prole, sempre pensava que mais ladrão que ele
eram os banqueiros que se alimentavam da miséria alheia, sabia que mais ladrão
que ele eram os empresários exploradores do trabalho alheio.
Tinha a
certeza de que seus roubos foram sempre com o objetivo de sustentar seus
filhos, mas também seus pequenos vícios, e que sempre ao final de cada assalto
voltava para casa com a sensação de dever cumprido, satisfeito com seu tão
odiado trabalho.
Num instante
o barulho de um tiro corta o silêncio que até então imperava, e agora sim, com
este último tiro - na testa talvez nem dor tenha provocado-, espalhou-se por ali, naquele mato, as ideias e
pensamentos do rapaz. Ainda se via alguns espasmos e pequenas contrações
musculares, nada pensado. A mais nobre ação humana, esfriava ali aos poucos no
capim: o pensar.
Sobre o seu
corpo alguém debruça, mexe-lhe no bolso e retira algumas notas dobradas ao
meio, entram num carro público e partem abandonando o corpo. Partiam para casa
com a sensação de dever cumprido, prontos para sustentarem seus pequenos vícios
e sua prole, satisfeitos com seu tão adorado trabalho.
Horas mais
tarde os urubus já o rodeiam com água no bico, doidos para lhe comerem o fígado
que mesmo em vida já vinha estragado devido ao forte uso de álcool, doidos para
lhe comerem o pulmão, também já gasto devido ao consumo excessivo de tabaco,
mas estavam mais doidos ainda para lhe comerem o cérebro, pois este sim estava perfeito para um suculento banquete,
pois seus pensamentos jamais haviam sido consumidos pelos pensamentos de sua
mãe.
Francisco Beltrão